Eu não queria que ela tivesse morrido
É assustador se dar conta de que os pais não são mais tão jovens e nem tão saudáveis
Annie Ernaux foi a primeira autora que li depois de ter perdido minha mãe. Ricardo me presenteou com um de seus livros e até hoje sempre que a leio penso nele, nos meus pais e na distância entre o mundo de onde vim com o mundo que passei a frequentar quando eles optaram por me incentivar a “ser alguém” pelos estudos.
Eu não queria que ela tivesse morrido foi a frase do livro que me botou de frente ao computador para escrever. De todas as coisas que já li de pessoas em luto, acho que nada me tocou tanto quanto ler Ernaux falar sobre sua mãe, sem qualquer juízo de valor, apenas como era e de onde veio. E a conclusão que nenhuma longa descrição sobre o estado sentimental de quem fica parece dar conta: eu só não queria que ela tivesse morrido.
Me impactou que ela também tenha passado pelo momento que muda tudo. O dia em que lhe passou pela cabeça pela primeira vez que sua mãe morreria. Você se lembra de já ter tido essa sensação, leitora? Não é uma conclusão que você pode chegar a partir da minha escrita. Você compreenderá somente quando te ocorrer e, daí sim, talvez você lembre essas minhas palavras.
Acontece quando vemos nossos pais frágeis demais, velhos demais. É a primeira vez em que eles saem do pedestal ao qual sobem em nosso nascimento e se tornam humanos. Finitos de tão humanos. Nunca me foi permitido ter este momento de consciência com minha mãe. A realidade se impôs sobre nós. A perdi em poucas horas, logo após acordar numa sexta-feira de fevereiro. Mas fui avisada sobre meu pai.
Cerca de oito meses atrás escrevi em meu diário “meu pai está velho, posso perdê-lo a qualquer momento”. Ele havia me mandando uma foto sua, sentado em seu carro. Os óculos bifocais que o permitem ver o mundo. Seu cabelo ralo e a barba muito branca. Meu pai aparentava ter engordado no mínimo 20kg nos últimos meses, eu podia ver a fumaça de seu cigarro sempre presente.
O segundo anterior àquele momento foi o último em que ele foi para mim imortal. Meu pai sempre foi um homem bruto. Falar alto e quebrar coisas que não funcionam na primeira tentativa são suas características. Desde seus 16 anos atravessa o país levando carros, sustentou a família e sobreviveu a um acidente grave em que seu caminhão tombou em uma noite de chuva. Eu não poderia imaginar que este mesmo homem seria tão mortal quanto você e eu. Até que pude.
Francamente estou apavorada. Tenho 29 anos e estou muito distante do que imaginei que minha vida seria aos 30: bem sucedida, com uma família que levava as crianças para visitar os avós aos domingos. Perdi minha mãe cinco anos atrás e percebo que muito provavelmente estarei órfã em 20. Também não quero partir antes dele, não desejo a um pai que enterre seu filho.
A grande semelhança entre nossos espíritos nos colocou em grandes confrontos. Além disso, se 10 anos atrás tivéssemos apostado todas as nossas economias em qual seria o futuro de nossa pequena família, hoje morreríamos de fome. Falas ríspidas, carregadas de culpa e de remorso têm sido comuns entre nós. Cessam só para dar lugar às declarações de amor profundo que proferimos com frequência. Nossa relação não sobreviveria ao equilíbrio.
Ver que tenho talvez mais duas décadas me faz querer mudar essa dinâmica. Quero mudar a ordem natural da coisas. Se não fui rápida o suficiente com minha mãe, agora quero poder descobrir o botão, a ação preventiva, a palavra correta que possa fazê-lo viver para sempre. Quero lhe dar todo o amor que tenho, até que transfira para ele toda a vida que tenho. Sofro porque me tiraram a venda sobre os olhos. Já não posso mais não saber o que sei e sei da finitude. E escrever sobre o meu desejo é provavelmente o mais próximo que chegarei de torná-lo real.
Adoro ler "voce" de uma maneira indizível. Sinto muito Ste, que o tempo uma hora pare de pesar tanto